sexta-feira, 7 de dezembro de 2001

Dead Kennedys / América Football Club - Tijuca - Rio de Janeiro

Dead Kennedys no Brasil...

Esse é o tipo de sonho que a gente alimenta quando começa a participar do movimento Punk e acha que finalmente tudo é possível.

A banda que me fez entender o sentido do Punk, da música criativa, da atitude, do envolvimento com o público, finalmente estaria em minha frente. Melhor que isso, estaria tão perto de casa, no Rio de Janeiro!

Em um primeiro momento fiquei surpreso. Soube em Setembro sobre a provável vinda dos caras. Mas logo tive a confirmação de que Jello Biafra, o lendário vocalista que mudou a história do Punk, não viria junto. Era óbvio, afinal de contas há quase dois anos havia uma briga na justiça entre ele e os outros membros da banda. Biafra, que também é dono da gravadora da banda (Alternative Tentacles), foi acusado de "sonegar" durante 10 anos um total de 76 mil dólares de direitos autorais à banda.

No começo de 2000, através de uma entrevista do guitarrista East Bay Ray ao site www.punkoiuk.co.uk tive a versão da banda para o fato. Ele se limitou a citar quantias e afirmar que não entenderam a reação de Biafra ao dizer que não pagaria o valor devido. Foi uma decepção para mim, afinal de contas Jello sempre sustentou um discurso ético que influenciou muito punk em todo mundo. Entretanto, eu queria ouvir o outro lado da história.

Jello Biafra, no site da gravadora (www.alternativetentacles.com), e em entrevista à agencia de notícias Reuters, afirmou que, como os próprios integrantes sabiam, se tratava de um erro de contabilidade e ele não teria tanto dinheiro para pagar a dívida. A Alternative Tentacles é um pequeno selo criado em 79 para lançar os discos da própria banda. Com o tempo começou a lançar várias bandas e estilos, mas nunca se tornou uma grande empresa.

Jello se defendeu de uma maneira muito convincente em suas entrevistas. Mas não é preciso muito esforço pra lembrar que ele tem poder de discurso inegável. De qualquer forma eu não quis julgar antes de ver a banda.

Não segui a onda de que Jello é tudo no Dead Kennedys e fui seguro pra Tijuca naquela sexta feira, por um preço justo em se tratando de um show em que passagens aéreas internacionais com preços em dólares estavam em jogo. Incluindo todos os demais gastos de produção: da segurança, divulgação e comida, até ao cachê, os R$ 14,00 reais antecipados foram condizentes. Há quem se assuste, mas os que apenas criticam certamente nunca tentaram produzir um show nessas proporções de forma séria.

Ao chegar, muitas pessoas nos bares e esquinas por volta do clube. As bandas de abertura (Blind Pigs, Uzômi, River Raid) tocavam e pouca gente entrava... descobri rapidamente o que acontecia: não vendiam bebidas alcoólicas dentro do show.

1:00h da manhã e todos estão entrando. Parece que os Dead Kennedys vão começar. Demora um pouco mais. Várias pessoas comentando os incidentes entre Jello Biafra e a banda, todos curiosos sobre o novo vocalista, os rostos deixavam claras as expectativas das 800 pessoas presentes, segundo número divulgado pela produção local.

A seguir por comentários ouvidos em toda a parte, semanas antes do show e na própria noite, MUITA gente preferiu sair para qualquer bar pé-de-chinelo que pagar para ver Dead Kennedys sem Jello Biafra, inclusive muitos amigos meus. O número poderia ser o dobro, cheguei a me impressionar ao sentir a falta de tantas figuras carimbadas da cena carioca, gente que não só ama como conhece cada música da banda. Até alguns minutos antes do show eu não conseguia acreditar nas palavras dos que diziam que não iriam de jeito nenhum sem Jello, a não ser que fosse de graça. Afinal de contas, como alguém pode ter tanta certeza de que Jello Biafra é que estava falando a verdade nas entrevistas?

Mesmo assim não restaram dúvidas: a grande estrela da noite foi o público.

Já enfrentei platéias de vários tamanhos em vários cantos do país, no palco como banda e na platéia como espectador. Vi grandes bandas de países diferentes, toquei com excelentes bandas até fora do Brasil, mas nunca vi um público tão diferente e tão unido.

A princípio, eram aquelas caras que eu vejo há uma década nos shows. Pessoas de todas as idades com camisas de todas as bandas, de todos os estilos de Rock, e muita amizade pra ver uma banda que já teve seus clássicos re-gravados até por bandas como Sepultura e Canibal Corpse.

Não se via socos, mas braços ajudando os que escorregavam, ajudando os que queriam ver mais de perto, e MUITO pogo sem frescura, mas sem violência proposital.

Punks, metaleiros, ouvintes de "rádios rocks" e até "jiu-jiteros", juntos me deram a certeza e o orgulho de ter visto o melhor público underground da história do Rio de Janeiro.

E a esta altura vocês devem estar se perguntando: e a banda? Querem saber sobre a banda? Quase ninguém viu.

Voltando ao início do show.

Eu já tinha perdido as horas quando os Kennedys entraram no palco. Foi um tumulto. Todos começaram a gritar, se socar e se empurrar, alguns pareciam ter enlouquecido e ninguém parecia se importar com as aparências, ainda assim, só se via sorrisos, um ajudando o outro a chegar mais perto, um mais desesperado que o outro, eu via gente que nem se conhecia se abraçando e gritando junto, imagens cômicas e que valeram a noite em uma das cenas undergrounds - a carioca - que até poucos anos era uma das mais divididas que eu já conheci. Durante os primeiros 20 minutos o público parecia mais preocupado em empurrar a grade móvel de ferro contra os seguranças (cerca de 10 engravatados de 2 metros de altura) enquanto cantavam, ou melhor, gritavam cada um dos clássicos. Ninguém fechava a boca, ninguém parava de empurrar! No início os seguranças tentaram resistir, mas logo correram para CIMA do palco! Ficaram em pé na FRENTE da banda, fazendo um paredão que não deixou NINGUÉM ver o show até o fim!!!

Mesmo assim ninguém parava nenhum minuto de cantar cada um dos clássicos, parecia que estavam ou estávamos hipnotizados por aquelas músicas, todos aqueles clássicos de uma das mais criativas e politizadas bandas punk do mundo!

A banda estava musicalmente impressionante. Brandom Cruz, o novo vocalista cantou muito bem. Não tentou imitar o mito da banda, o que seria totalmente ridículo, e chegou a subir nas caixas de som para ver o público, mas como se esperava, as comparações não cessavam. A presença de palco inigualável, marca registrada da banda, se perdeu com a ida de Jello. Parecia apenas mais uma banda com ótimas músicas, não a mesma banda que re-criou o punk não só musicalmente, mas como uma proposta de atitude. Na verdade parecia muito mais uma perfeccionista banda cover de Dead Kennedys ao invés da própria. A alta qualidade musical foi sufocada pela própria acústica local inadequada (trata-se de uma quadra fechada de Futebol!), mas a atitude, que seria o contra ponto, foi nula e anulou o show por parte da banda que se comportou como um conjunto de estrelas do rock como qualquer bandinha famosa de rock em cima do palco.

Nenhuma mensagem além das músicas criadas por Jello Biafra. A única vez que alguém da banda ousou tentar se comunicar com a platéia foi quando o vocalista pediu em inglês que o público chegasse pra trás, para que os seguranças pudessem descer e todos pudessem ver a banda tocar. Ninguém parecia entender, ou pelo menos não estavam interessados em entender. Pelligro, o baterista que parecia estar mais jovem que no começo de carreira, também arriscou algo como "Hello Riiiiiiiiiooooooooooooooo!!!" (com o típico sotaque norte americano).

Antes desse dia eu não acreditava que Biafra pudesse ser de verdade a alma da banda, pra mim a alma dos Kennedys era a atitude com a platéia. A pesar de tudo, se o Dead Kennedys já estava decepcionando em seu mais grave pecado, a falta de comunicação, minha frustração só ia ser total no fim.

Já havia me conformado de, após 10 anos de espera, ver um show sem Jello Biafra, mas ver Dead Kennedys sem "Drug Me"??? Aí já é demais!!!! Só tocaram clássicos, do primeiro ao último disco e não iria faltar nem um se não fosse por "Drug Me". Acontece que essa não é um clássico qualquer... principalmente no Brasil, que é berço de uma das bandas mais famosas de Metal no mundo, o Sepultura, que gravou essa música e fez muito metaleiro se deslocar pro show.

Mas mesmo esquecendo esse incidente musical, eu talvez tenha que admitir que eles sejam os mesmos, como o guitarrista East Bay Ray afirmou em entrevista à agência de notícias Reuters, mas eles estão muito longe de ser a mesma banda.

Cheguei com boa vontade e sem preconceitos com a nova formação (a pesar de terem trocado "somente" o vocalista), mas saí calado na certeza de que infelizmente os Kennedys sem Jello Biafra estavam mortos. Da noite, pra mim restou a imagem, o sentimento e a saudade sem igual de ver aquele público pogando, cantando, se divertindo. Não dá pra negar a qualidade dos artistas e das músicas que empolgam por si só, mas o Dead Kennedys foi sempre muito mais que suas músicas e o verdadeiro show, essa noite, ficou de fora do palco.

por Bruno Boca*

*publicado originalmente no Feira Moderna Zine #2



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